Por Evandro Barreto, autor do livro “Na Mesa Cabe o Mundo”, um delicioso e suculento livro de crônicas, em que o autor nos leva aos mais tradicionais bistrôs de Paris. À venda no site Minha Viagem Paris.
A crítica assumiu o neologismo, muitos tentaram copiar a fórmula, mas não havia fórmula – havia atitude. Desde 1992, quando abriu sua primeira casa, que batizou de Regalade, Yves Camdeborde faz alta cozinha em ambiente de bistrô, a preços de bistrô. Simples assim.
Depois de doze anos de mesas cheias e prestígio sem fronteiras, ele cansou de fazer o mesmo sucesso no mesmo lugar. Ao invés de acomodado, sentia-se cada vez mais incomodado pelo medo da acomodação. E resolveu começar tudo de novo.
Comprou um hotel no Carrefour de l’Odeon, o “Relais Saint Germain”, e transformou o velho café do térreo, palco de intermináveis papos filosóficos nos anos 50, no Le Comptoir. Ali, você pode tentar fazer reservas para o jantar com meses de antecedência – ou chegar na hora do almoço e ser instalado imediatamente, seja no salão, seja na varanda, se o clima ajudar. Com entrada independente, existe, também, o “Avant Comptoir”, dedicado às tapas e sushis.
Nas mesas que ladeavam a que ocupamos, o eterno e o fugaz de Paris estavam representados. À esquerda, e como sempre, turistas – só mudam as tribos predominantes. Houve a fase dos poetas ingleses, dos nobres russos, dos pecuaristas argentinos, das famílias do middle west americano, das comitivas japonesas. Chegou a vez da nova classe média brasileira e dos yuppies chineses. Um casal dessa última e requintada espécie simplesmente apontava no cardápio o que queria – e pedia com grande competência, da entrada ao salmão fresco.
A nossa direita, dois ícones da inteligência francesa: o intelectual pós-Camus e o artista pós-Steve Jobs. O segundo extraiu de uma grande bolsa o notebook de última geração e passou a exibir ao interlocutor sua mais recente criação em web design – a nova coleção de relógios com a griffe Christian Dior. O intelectual acompanhava a apresentação em respeitoso silêncio, enquanto os dedos enrolavam com perícia um cigarro artesanal (sem preocupação com o que pudesse pensar a polícia de Sergipe).
La Blonde e eu dividíamos nossas atenções entre olhadas discretas à tela iluminada e a viagem encantada pelas vinte páginas da carta do “Le Comptoir”, quatorze das quais reservadas às bebidas. Naquele momento entendi a extensão da frase de Camdeborde na entrevista que deu quando resolveu mudar de vida e endereço: “Há mais para se comer do que lagosta, mais para se beber do que bordeaux”.
Há duas maneiras de reagir a um enunciado desses. Ou você escolhe alternativas tão nobres quanto as que ele descarta ou reflui ao básico. Na primeira hipótese, poderíamos ter pedido, como entrada, geléia de caviar de arenque e musseline de haddock. Mas como queríamos testar o conceito de ‘bistronomia”, comandamos o que se pode encontrar em qualquer bistrô francês: oeuf mayonnaise e paté campagne. Na seqüência, fomos coerentes: bacalhau gratinado e parmentier de lebre, pratos sem molhos alquímicos ou guarnições exóticas. Como vinho, um Côtes du Rhône de preço médio, longe da pretensão de ofuscar a fama mundial do Chateauneuf du Pape.
La Blonde estava tão concentrada na responsabilidade da decisão que, por duas vezes, enfiou a própria bolsa na sacola aberta do nerd ao lado. Mas o risco de um incidente internacional foi compensado com sobras. Onde existem arte e propósito, simplicidade pode ser o outro nome da perfeição. Num momento em que o governo francês cria selos obrigatórios para distinguir pratos de autor daqueles que se propagam em hordas congeladas e vêm à mesa após breve estágio no forno de micro-ondas (dizem que em nome da crise), Camdeborde agiganta-se como herói da resistência. Nem por isso cobra preços absurdos e ainda é capaz de gestos galantes, como oferecer a sobremesa de graça, porque o talher que acompanhava o montblanc tinha sido mal lavado.
Na saída, uma rápida espionada na cozinha para descobrir qual o segredo. Segredo algum. Poucos funcionários trabalhando sem atropelos num espaço limpo e pequeno para o movimento da casa, mas organizado com inteligência e operado com destreza. Quando o talento é muito, tudo mais pode ser menos.
Comptoir de l’Odeon: 9 Carrefour de l’Odeon, 75006 Paris.
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Descontos e presentes aos leitores do Conexão Paris
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37 Comentários
Beth Lima
Dodô,
Sua descrição me fez participar da cena como se lá estivesse.
Muito boa dica.
Vou arriscar um almoço, quem sabe consigo?
Abraços a vocês.
Cláudia Oiticica
Lendo, imaginando e morrendo de rir com a estória da bolsa da Beth,rs. Mas La Blonde tem tanta atitude que tirou de letra .
Com aquelas mesas tão coladinhas é impossível não participar da refeição alheia, rs.
Dodô, excelente!
Francy
Dodô : só para reafirmar a beleza do seu texto , e me divertir com as aventuras junto a La Blonde. Abs prá vocês.
Beth
Madá
Eu liguei para o Le Comptoir em meados de setembro para fazer uma reserva para o jantar.
Só tinha disponiblididade para o dia 11 de novembro.
Dois meses de espera…
Madá
Dodô,
Já tinha lido o texto no Comensais, mas foi muito bom reler aqui e explorar mais detalhes desse cenário delicioso, muito real, que só você percebe e descreve com maestria e humor.
Graças à Lina, também tive grandes momentos no L’Avant (macaron de boudin) e no almoço do Le Comptoir. Gostaria de ir lá um dia à noite, pois o menu é diferente do almoço, mas parece impossível, como você mesmo diz. Eles nos disseram que a preferência na reserva do jantar vai para os hóspedes do Relais e não sobra quase nada.
jorge fortunato
Dodô
Impecável, comme d’habitude.
Lidia Lima
Leitura imperdível, parabéns Evandro.
Aproveito o espaço para pedir alguma dica do Conexão, by Lina, da cidade de Marcelle pois estarei por lá, em março.
Um abraço.
conexaoparis
Lidia
Leia esse artigo:
https://www.conexaoparis.com.br/2009/12/26/a-provence-o-luberon-e-a-cote-dazur/
Mauricio Christovão
Excelente texto, Dodô. Teletransportei-me nas suas palavras até lá e literlamente “babei” com a descrição do menu.
Eliana Barbosa
Beth,
Não pude conter a gargalhada ao imaginar a cena da bolsa…rs!!!
Eliana Barbosa
Texto gostoso, refinado e bem humorado!