Reflexões sobre a experiência de ser bilíngue, ou seja, a difícil questão dos palavrões e expansão do vocabulário.
Eu me tornei realmente bilíngue já adulta, quando me instalei em Paris e me casei com um francês. Minha cara metade se tornou trilíngue quando o português do Brasil entrou na sua vida. Eu aprendi o francês mais rápido do que ele o português. Em imersão total, o aprendizado foi mais fácil.
As “palavras limite”
Na fase em que eu já dominava bem o idioma de Descartes, percebi que tinha dificuldade para adotar a maneira corriqueira de falar dos amigos franceses. Eu não sabia qual era o peso de certas palavras, sobretudo das gírias e expressões que pronunciamos em situações difíceis. Em outras palavras, era difícil para mim, em francês, soltar uma expressão de desagrado quando derramava o molho ou, tarde da noite, não encontrava a chave de casa na bolsa. Nestes momentos, passava diretamente para terreno mais seguro e me exprimia em português.
Quando falo do peso de uma palavra entro na área da impossibilidade para um estrangeiro de determinar o grau exato de vulgaridade de uma expressão. Em quais situações a expressão é aceita sem causar tensão? Qual a faixa de idade ou qual categoria social utiliza a palavra ou a expressão?
Se estamos no terreno da língua materna sabemos quando, porque e como usar os “termos limite”. Dominamos o peso exato da palavra ou das expressões. Sabemos se vamos agredir, divertir ou mostrar um lado desenvolto. Conhecemos sua origem e a época em que surgiu.
Quando meu marido passou a dominar nosso idioma, sua atitude foi diferente. Ele rapidamente adotou todas as expressões corriqueiras e alguns palavrões. A cada vez que os utilizava divertia nossos amigos. Muitas vezes a palavra não estava totalmente adequada ao contexto; outras totalmente fora. Além de provocar hilaridade geral, a desenvoltura do meu marido confortava minha apreensão no uso de gírias e palavrões em francês.
Cairn. Foto do amigo Jean Paul Lavocat
A expansão do vocabulário
Viver permanente entre duas línguas provoca um aller/retour diário entre dois modos de vida. Alguns exemplos. No Brasil não executava tarefas domésticas, não era adepta do hiking (randonnée) e não sabia o que era bricolage nem bricoleur. Quando me exprimo em português não encontro rapidamente ou não conheço as palavras que descrevem meu novo lifestyle.
Ao dividir a vida com um cirurgião dentista, bricoleur nas horas vagas, encontrei pela primeira vez a perceuse (furadeira), a raboteuse (plainadora), o tour (esmeril), a ponceuse (lixadeira).
Quando estou em Paris participo de grupos de randonneée (caminhadas longas). Na Córsega, prefiro o trekking (caminhadas nas montanhas ou de vários dias). Topo tudo, menos o bivouac (passar a noite na montanha ao ar livre). Fico horas admirando a beleza de um cairn (montículos de pedras, onde cada passante coloca sua contribuição).
Em francês já desisti há anos de explicar para os amigos o que é saudade, jaboticaba, farofeiro, cerca elétrica… nunca encontro a expressão certa que descreva a emoção intensa, a fruta da infância, as diferenças de classe e a violência urbana.
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14 Comentários
marcy
Como gosto do que a Lina escreve ; sempre muito interessante e real.
Parabéns.
Riany
Que legal!!! =)
Jacqueline
Isso acontece com o inglês. Falo qualquer coisa sem sentir, sem dar significado, simplesmente um discurso aprendido, o que me causou um dos maiores aborrecimentos com um amigo de Londres que entendeu que eu estava apaixonada pelo amigo dele. Eu era então bem jovenzinha, mas fiquei super chateada, pois eu jamais pensaria no sujeito para par romântico. Neste tempo, eles estavam no Brasil e eu era praticamente o único elo dos dois com nosso idioma. Eis que eu uso o deles atabalhoadamente, adorando exercitar meu aprendizado. Quando em Londres, sei que fiz a mesma coisa, claro que nada que desse essa interpretação, mas ia falando e falando, alinhando palavras e frases, e a sensação era de não estar dizendo o que queria, mas simplesmente colocando as palavras sem significado, só para preencher espaços.
Thiago Augusto
Ha oito anos leio o conexaoparis.com quase que diariamente. Esse tipo de texto é sempre arrebatador. Encanta e conforta igual comida de mae. Sao sempre fantasticos. Lina, parabens!
Phillipe
Ótimo post e com a assinatura indelével no Conexão Paris! Que venham mais textos com essa sutileza e mensagem.
Rodrigo Lavalle
Phillipe, obrigado pelos elogios.
Adriana Dias
Aprendi a tricotar em inglês, que é muito conciso nos termos. Explicar uma receita em português é bastante complicado. A glória será tricotar em francês (em breve)
Elzirene Rodriques Espéret
Bom dia
Que delicia ler esse texto,e saber que existe maïs pessoas que passou e passa pela mesmo coisa que eu…ufa!!!!
Sou casada com um francês a um ano e no momento moro na Córsega (ajaccio)
Meu Deus como sofro pra aprender pronuncie e escrever em Francês ….em compensação. Meu marido fala português muito bem…Isso não me ajuda,por que eu fico na minha dona de conforto)mais quando saio tento me entregar a população …obrigada sou nova por aqui é já adoreiiiii beijo
Rose Bevilacqua
Falo 4 idiomas e quando estou na Europa algumas vezes misturo as palavras de um ou outro, e outras me pergunto em que língua estou falando, afinal. É divertido !
Dillemba
Muitíssimo interessante o post, acho que foi transmissão de pensamento. Li há pouco um livro de crônicas super bem humorado descrevendo as características do parisiense e onde descobri que putain é uma expressão corriqueira, usada tanto para elogiar como para reclamar (como o nosso:droga!).
Muito contente fui contar para a professora que já sabia uma palavra de uso corrente em Paris e ouvi que não, pas du tout, só os jovens e os sem educação se expressam assim. Snif, snif.
Rodrigo Lavalle
Dillemba, o “merde” é mais light.
evandro barreto
Lina, parfait! Lembrei-me do cartunista e teatrólogo francês Gerard Lauzier, que trabalhou comigo no Brasil no remoto século XX. Ele inventou o idioma-síntese, do qual reproduzo uma frase que explica o conjunto: “O traffic no Rio é muito dangeroso”. Abraços, de casal para casal.
Lina
Querido Dodô. Saudades. Perfeito o idioma síntese. Um grande abraço de casal para casal!